Rasa Tattva e a Relação Íntima com Krishna

O texto aqui apresentado se baseia na terceira parte do Jaiva Dharma, de Srila Bhaktivinoda Thakura, um vaishnava[1] da Brahma Madhva Gaudiya Sampradaya. Ele foi transcrito de aulas[2] que eu ofereci no Templo Neo Bhagavata – RJ[3].

Esta parte do livro se desenvolve em torno do diálogo de um devoto chamado Vijaya Kumara com seu Guru (preceptor, professor espiritual). Vijaya Kumara vai fazendo perguntas e ele (o Guru) vai explicando, enquanto, eu, sob orientação de Shri Krishna[4], fui lendo o capítulo e vendo o que era importante para Ele comentar.

Sendo assim, nesse texto, vamos ter comentários do próprio Krishna, em torno de questões que Ele explica com aprofundamento. Tudo começa assim:

Vijaya Kumara e Vrajanatta são parentes. Eles decidem fazer uma peregrinação para Puri[5], que é uma cidade bem sagrada para os devotos vaishnavas. Mas, antes de ir para Puri eles pedem permissão para o seu Guru.

 

Iluminações de Jagannatha

Então, o Senhor Krishna fala que isto é natural e espontâneo. Ele explica que quando alguém está rendido a outro alguém que está mais avançado espiritualmente é normal que ele siga instruções do que é mais avançado e que poderá ajudá-lo a trilhar o caminho para encontrar com o Senhor (com Krishna).

Esta é a figura do mestre espiritual de Vijaya Kumara; e (conforme o livro mostra) eles vão para Puri na época em que está havendo o Ratha Yatra – um evento, um festival em que as Deidades de Jagannatha, Baladeva e Subhadra são transportadas em procissão.

Jagannatha é uma forma de Krishna, que está junto com Seus irmãos, Balarama e Subhadra. Subhadra é uma manifestação de Parvati, que aparece com os irmãos quando Krishna vem ao planeta, há mais de cinco mil anos atrás (na Índia). Balarama é a personificação do impulso cocriativo de Krishna, e Subhadra é um aspecto da energia da esposa de Shiva (Parvati).

Esta Deidade existe em Puri e as pessoas fazem o Ratha Yatra, que é um festival de carros decorados onde elas saem às ruas, congregando multidões em torno da Deidade e transportando-a entre dois Templos[6].

Krishna comenta que esta Deidade possui aspectos dEle mesmo para adoração. As pessoas que percebem Deus a partir destas formas conseguem tomar o darshana e receber as bênçãos desta Deidade e observar as opulências e as atribuições deste Todo que é Deus, de Krishna, do Absoluto que está presente ali naquela forma e naquela cidade.

Por isso mesmo quando eu cheguei lá (no Ratha Yatra 2014), comecei a ter êxtase de tristeza porque eu queria ver aquela forma dEle (Jagannatha). Então, Krishna me mostrou Sua forma Transcendental, dizendo-me que eu não precisava chegar perto da Deidade, que está ali para as pessoas que não tem visão transcendental poderem o ver através dEla. É possível sentir as opulências dEle a partir do lugar apenas, mesmo sem avistar a Deidade propriamente[7].

Então, Ele diz que os devotos vão para lá para fazer esta peregrinação, a fim de se aproximar mais dEle por meio das Deidades e/ou para tomar Seu darshana apenas por concentração transcendental na Sua presença ali.

 

O que é darshana?

Darshana é um termo que já estamos empregando bastante aqui; e significa uma aparição ou um momento em que você vê, sente e pensa uma Divindade. Isso é um darshana; e as pessoas vão para lá (Puri) para tomar o darshana daquela Deidade.

Então, elas fazem o parikrama (que é circundar o Templo) e tomam prasada (alimento oferecido a Krishna no altar) em locais que são sagrados ali da cidade e fazem contato com certos lugares que vão qualificar o devoto para o êxtase, se o devoto perceber Shri Krishna nestes lugares, se o devoto perceber Shri Krishna no parikrama ou na prasada.

Se ele (o devoto) está qualificado para receber este êxtase do contato com Deus, do contato transcendental, viverá tal intenso contato. Mas, Madhava comenta que muitas vezes as pessoas vão fazer as peregrinações, vão participar destes festivais e permitem que suas mentes se afastem do objetivo que as fez estar ali. Daí ficam na mente inferior (linear) só e não veem Deus no evento.

Em geral, para todas as pessoas ali presentes, distribui-se muita prasada, que é o alimento que causou prazer para Ele (Krishna) e que vai, por misericórdia, também causar prazer para quem se alimentar deste alimento que foi oferecido para o Senhor.

Então, Krishna fala que: “Quem deste alimento tomar se depurará de muitos de seus condicionamentos, doando a si mesmo a chance de se renovar, enquanto se alimenta daquilo que de fato o satisfará” – do alimento que foi oferecido para Ele, portanto.

 

Compreendendo rasa

Continuando, Vijaya Kumara e Vrajanata chegam em Puri e vão se aproximar de Shri Gopala Guru Goswami, que é um Guru da região, por sugestão do Guru original deles (da cidade de onde eles vieram). Aproximando-se de Shri Gopala Goswami, os dois devotos irão obter instruções sobre rasa tattva.

O livro Jaiva Dharma, então, desenvolve vários raciocínios, dos quais nós nos utilizamos como base para o nosso curso[8]; e, para começar, Krishna comenta que rasa tattva é um assunto essencial para a alma, porque esse assunto vai esgotar o que impede a alma de voltar para Ele. Muito se escreveu, mas o assunto ainda não se esgotou.

Ele mesmo coloca que muita coisa ficou incompreendida, sendo que, ao longo deste curso, entende-se o porquê das incompreensões. Acontece que é impossível realizar e escrever determinadas coisas que não estão na natureza da sua alma.

Com certeza Bhaktivinodha Thakur, que foi quem escreveu este livro, era uma pessoa autorrealizada. Ele era um santo vaishnava, mas realizou e escreveu o que conseguiu realizar de acordo com a natureza eterna dele. Ele era uma manjari e manjari é uma sakhi, uma garota que serve as gopis que servem Radha. Então, Bhaktivinoda era uma manjari no mundo espiritual com Krishna e traduzia o que via a partir do seu olhar específico e, ao mesmo tempo, do olhar que Krishna lhe fornecia. É assim que funciona.

A partir desse olhar, ele escreveu que Shri Gopala disse aos devotos que o buscavam: “rasa é um tattva (princípio) sem igual, que pode ser comparado ao nascer da lua, cuja radiância é a lila (passatempo eterno) expansiva de parabrahma Sri Krishna. Bhakti-rasa é a função de Krsna-bhakti quando ela se torna absolutamente pura”.

Rasa tattva é sem igual; e por quê?  Porque consiste em uma ciência que nos explica o amor que reciprocamos por Deus na Eterna Morada. Não é apenas o amor que as pessoas sentem superficialmente, mas, é o amor na relação eterna que temos com Ele na Eterna Morada.

Krishna é algo para você na Eterna Morada que é diferente do que Ele é para alguma outra pessoa e diferente do que Ele é para mim. Cada um tem uma relação pessoal com Krishna na Eterna Morada; e é rasa tattva que nos explica como é isso e como isso funciona. Então, é sem igual e é comparado ao nascer da lua e a sua irradiância é a própria lila de Krishna.

Desta forma, rasa tattva é comparada com o nascer da lua, pois a lua quando está nascendo tem um brilho e é muito belo. Aquele brilho são os passatempos eternos de Krishna (lila). Quando se fala em lila refere-se a todas aquelas histórias de Krishna com as gopis, o que Krishna faz nos palácios e o que Krishna faz com Arjuna. Como Ele se relaciona com Arjuna e com todos aqueles Seus associados.

Na lila, tudo o que está acontecendo eternamente é o que irradia de rasa tattva. Então, rasa tattva é a lua e os passatempos de Krishna são a irradiância da lua (o brilho da lua). Trata-se de uma comparação.

 

Bhakti-rasa, o Serviço Devocional mais puro

Tattva é uma palavra que significa princípio e existem muitos deles na Ciência de Deus. Está-se estudando aqui um deles, que é rasa tattva, o qual, na verdade, é um princípio que contém muitos outros. Pode-se, portanto, usar o termo no singular, se referindo ao princípio do Amor Divino, ou no plural, porque têm muitos princípios dentro de rasa tattva.

Trata-se de um princípio que não é meramente racional e que a mente racional não consegue entender, ele é transcendental. A palavra rasa se refere ao conjunto de sensações dentro de uma relação transcendental com Deus, sendo rasa tattva o princípio que rege essa relação transcendental com o Senhor[9].

Dentre todos os princípios, Krishna coloca rasa como o mais fundamental, porque trata da nossa relação com Ele. É citado também o termo bhakti-rasa, o que é Serviço Devocional, sendo que rasa existe na relação com Deus. Bhakti-rasa é a relação que se desenvolve no seu Serviço Devocional, ou vice-versa, o Serviço Devocional que você desenvolve de acordo com a rasa através da qual você se deixa envolver com Ele.

Bhakti-rasa ocorre em consciência pura, quando você está na sua consciência mais pura, e você se devota plenamente a Ele. Quando você o ama conscientemente e com Ele reciproca desse Amor, realmente consegue experimentar bhakti-rasa, que é o Serviço Devocional puro, sem máculas de nenhum tipo.

Shri Krishna coloca então que rasa tattva “pode ser comparado ao nascer da lua, porque aclara a escuridão que a noite da alma faz estabelecer, e sua radiância é o que Eu realizo enquanto me ofereço para que haja a intensa relação que Me faz ater por quem por tal fundamento se deixa esclarecer”. Por isso faz-se uma comparação com a luz da lua. Estando a alma obscurecida, ela não consegue travar esses contatos eternos com Deus. Rasa-tattva é, então, a luz da lua que ilumina a noite escura.

 

Auto-entrega no sthayibhava

A irradiância desta lua é o que o próprio Krishna está realizando ao se oferecer para reciprocar com cada um de nós. Se você está reciprocando com Ele uma relação, e você está compreendendo esse princípio, é porque ele vem sendo irradiado da própria Fonte, que é Deus. Porque o Senhor realiza isso, por meio do Seu eterno pensar/existir Absoluto, Ele irradia tal Luz, que é percebida pelo devoto – a Luz de rasa tattva.

Rasa é um princípio pré-determinado, o qual é conhecido em detalhes pela alma que realiza sua condição existencial junto de Keshava, enquanto Sua associada transcendental[10]. Isso o Senhor complementa, dizendo que “bhakti-rasa é obtida quando a consciência se purifica de outras tendências que não sejam apenas Me amar e Comigo reciprocar de mútuas considerações; e ela está no Serviço que o devoto realiza enquanto pretende se purificar de tudo o mais que não seja apenas a tal relação se entregar”. A auto-entrega a uma relação, a qual se caracteriza por determinada rasa, se expressa de acordo com determinado sthayibhava.

Cada pessoa tem um sthayibhava, o qual na verdade só aparece quando você começa a se interessar por Deus. Se você não tem interesse nenhum por Deus, o seu sthayibhava é nulo.  O sthayibhava reflete seu apego por Deus. Aqui mais especificamente está se abordando o apego por Krishna, pois, neste texto, Deus se mostra para nós através deste nome e desta forma (ou de outro nome ou outra forma, como Shiva). 

O sthayibhava é também o primeiro sintoma que desperta quando você começa a se voltar para essa relação, que é uma relação eterna que você tem com Ele. Tal sintoma qualifica a sua relação com a Fonte da sua alma. Isso significa que um apego é diferente do outro.

A relação da autora desta obra é em madhurya-rasa, e o seu apego por Krishna é conjugal. Assim o sthayibhava da autora reflete a madhurya (atração conjugal) para com Krishna (e/ou Shiva, Harihara). Acontece o mesmo na vida individual das pessoas do mundo material. Por exemplo, quando alguém tem um marido e uma filha, o apego de tal pessoa pelo marido é diferente do apego da mesma pela filha. De tal mecanismo dentro da relação com a Pessoa de Deus resulta o sthayibhava.

O sthayibhava é a primeira coisa que começa a surgir, às vezes muito leve e sutil, quando, iluminado por rasa tattva, você volta a interagir com Krishna na eterna morada. Ele surge como um sentimento e um humor de apego recíprocos, que é bem específico à sua relação eterna com Deus. Quando alguém volta a ter acesso a Ele significa que esta pessoa retomou o sthayibhava característico à sua relação.

Voltar a se relacionar com o Senhor permite que o apego a Deus se revele, o qual é chamado rati. Rati é o apego em si, de modo que qualquer apego pode ser assim denominado. Mas, se o apego é por Krishna (ou pela Pessoa de Deus, em alguma de Suas formas), dentro de uma relação transcendental com Ele, este apego expressa-se em sthayibhava.

Rati aparece, esse apego se revela e vem demonstrando sentimentos que realmente você tem. Tais sentimentos são expressão de uma reciprocidade com Krishna, exatamente porque é Ele que lhe faz relembrar dessa relação. É Ele que faz você relembrar, que toma você de volta. Mas, trata-se de um processo recíproco, pois, devido ao seu esforço em buscar pelo Senhor, você retoma o acesso a Ele.

Entenda-se, portanto, que é Ele que lhe dá o acesso. Na verdade, este acesso é uma expressão da reciprocidade da alma com Deus, que é eterna, e que está se manifestando através de um novo contato que a pessoa está fazendo com Ele.

O novo contato revela rati, apego pelo Senhor. Mas, o apego que você já tem, quando você já sabe quem você é ao lado de Krishna, irá expressar o sthayibhava, que é específico a cada relação com Ele.

 

Para concluir

Então, o Swami que está dando a explicação para Vijaya Kumara começa a dizer que é possível desenvolver rati a partir de vários samskara, atos purificatórios pelos quais se passa ao longo da vida[11]. Quando se nasce, quando se casa etc., ocorrem os samskara, os quais caracterizam diferentes etapas da experiência individual.

O Swami explica, no Jaiva Dharma, que à medida que se vai passando por esses samskara, rati vai se desenvolvendo em você, e vai evoluir para rasa, dentro de uma relação transcendental. Mas, Krishna explica que não são exatamente os samskara que desenvolvem rati, mas, eles permitem que a rati eterna se manifeste, pois, são eles atos de purificação.

Aqui explica-se que no caso de outros processos diferentes do Hinduísta, mas, que compreendam séries de purificações, da mesma forma, ao se passar pelas purificações está se transferindo através de samskara. São estas purificações que permitem que a alma volte a travar contato com o Senhor, a medida em que vai se depurando das imperfeições da consciência humana materialista.

Mas, não são as purificações que fazem com que a pessoa desenvolva uma relação com Ele. Aqui há uma diferença de interpretação de um mecanismo. Algumas pessoas, de certas linhas de fé, acham que você desenvolve uma relação com a Pessoa de Deus enquanto está em corpo físico. Sendo assim, ao longo desta e de outras vidas, tudo o que você faz lhe conduz ao estabelecimento de tal relação.

Pensando desta maneira, há devotos que até escolhem o tipo de relação que lhes agrada mais, dentre as opções que existem. Mas, não é assim que percebemos o advento na vida de uma relação eterna, a qual se revela ao campo da experiência externa, a partir da eternidade da alma.

A alma existe para sempre junto de Deus e a desconexão do ser humano, devida às impurezas da vida ordinária, que porventura tenha assumido ao longo de sucessivas vidas, precisam ser eliminadas, abrindo espaço para que rati se expresse.

Entenda-se, portanto, que a relação em si existe eternamente, e os samskara, sendo purificatórios, ajudam para que tal eterna relação volte a se revelar para a alma em purificação.

Para mais detalhes, entre em contato: [email protected].

 

[1] Devoto de Vishnu, Narayana, Krishna.

[2] Os devotos Prema Sakhi, Shivamurti Dasa, entre outros colaboradores que estavam associados ao Templo na época, foram os responsáveis pela transcrição.

[3] O Templo da Fé Neo Bhagavata é uma expressão de liberdade da alma eterna, a qual se refez na experiência transcendental. Não somos filiados a nenhuma das sampradayas vaishnavas ou shaivas mais clássicas, mas, respeitamos todas elas e, mais do isso, estudamos seus escritos, visitamos seus templos e peregrinamos através de locais que para seus devotos são também sagrados.

[4] Meus diálogos com Krishna são espontâneos, já que vivo na consciência eterna da alma. Quando digo que estou escrevendo com Ele, não se trata de mediunidade, como já me perguntaram. Trata-se de um relação consciente com Deus. Apenas transcrevo o que Ele me explica e/ou me orienta a fazer.

[5] Veja mais detalhes sobre o distrito de Puri em: https://puri.nic.in/.

[6] Veja cenas do Ratha Yatra 2021 em: < https://www.youtube.com/watch?v=GCsuK5b0I58>.

[7] Devotos ocidentais não podem entrar no Templo, o que é uma tradição local.

[8] Curso de Rasa-Tattva: princípios do amor divino, Templo Neo Bhagavata, Rio de Janeiro, 2013.

[9] Em Bhakti-Rasa e o Caminho da Flor de Lótus (2016), também descrevi bhakti-rasa como “um conjunto de mecanismos, os quais despojam a pessoa de interesses mundanos, de modo a que ela possa trilhar o caminho que conduz à consciência individual à lila de Deus”.

[10] Ainda em Bhakti-Rasa e o Caminho da Flor de Lótus (2016), cito Buchta e Schweig (s/d), que mencionam a experiência de amor perfeito a que se refere a palavra rasa. Ela envolve “emoções puras em qualquer uma de várias relações eternas com a divindade, de maior ou menor níveis de intensidade de bem-aventurada intimidade, que ocorrem na realidade divina da lila, na qual os atos ou a peça de Deus acontecem”.

[11] No Hinduísmo, são mencionados 41 samskaras (atos purificatórios), alguns dos quais devem ser executados diariamente, outros em certas épocas e alguns ao menos uma vez na vida (o 41° envolve a cremação do corpo após a morte física). Mais alguns detalhes em: < https://www.kamakoti.org/hindudharma/part16/chap8.htm>.

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