A Deusa no Universo do Hinduísmo: o Navratri
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A Deusa está presente em muitas manifestações culturais, de espiritualidade e religiosidade. Nas diferentes vertentes do Hinduísmo, Ela é reverenciada a partir de distintas perspectivas. Na percepção Vaishnava, Lakshmi é a Deusa soberana. No Krishnaísmo, Ela é Radha. No Shaivismo, a Adi-Shakti ou energia feminina primordial é chamada Durga (ou Parvati). É com este último nome também que o aspecto feminino de Deus é reconhecido como absoluto no Shaktismo.
Em todos os casos, Durga é a Esposa de Shiva e, portanto, a Divina Mãe. A partir de um ângulo de visão que aceita tanto a percepção Vaishnava quanto a Shaiva, a compreendemos como um humor do aspecto feminino de Deus, assim como Radha (ou Lakshmi) e Sarasvati são também outros humores da mesma Pessoa. Portanto, sua consciência abrange o Todo que o Esposo é.
O aspecto feminino da Pessoa Suprema se complementa ao masculino, estando presente no coração de cada ser vivente, de cada alma, enfim. Desta forma, é importante conhecer Ela de um jeito que facilite o trânsito entre as dimensões da existência por meio da sabedoria e das bençãos que a Shakti concede.
Mas, para conhecê-La em tal humor é necessário se relacionar de alguma maneira com as tradições antigas da Índia religiosa e cultural. Nosso sistema de fé Neo Bhagavata, uma vertente ocidental do Hinduísmo Integral, pode fornecer subsídios para quem deseja vivenciá-la na experiência cotidiana, mesmo estando em um país sul-americano e, portanto, longe do continente asiático.
Visando contribuir com tal conhecimento, aqui reúno informações sobre alguns pontos básicos a respeito da Shakti, indicando por onde começar. Por ser Durga a Suprema Mãe no Shaktismo e, ao mesmo tempo, no Shaivismo, a selecionei para a presente abordagem. Entre os pontos a serem explorados, escolhi as dez noites dos Navratris. Nas próximas linhas, discorro sobre elas, sempre que possível, inserindo links para recursos adicionais de aprendizagem.
Navratris – as Nove Noites da Deusa
Navratri significa “nove noites”. Corresponde a um festival que ocorre quatro vezes ao longo do ciclo anual, sendo celebrado nos templos, residências e em todos os lugares possíveis. Trata-se da celebração da vitória sobre o mal, além de ser uma oportunidade grandiosa para meditar em torno de fortalecimento espiritual, iluminação pessoal e amadurecimento para a vida. Os quatro eventos anuais são os seguintes:
- Magha Gupta Navratri (janeiro ou fevereiro): é inverno na Índia e, portanto, um período de amadurecimento e de finalização de ciclo na vida. Desta forma, o período é propício para direcionar intenções para renascer, para o novo e o que está para se expressar.
- Chaitra Navratri (março ou abril): é o início do verão seco na Índia. Trata-se da estação na qual o sol irradia seus raios mais intensamente sobre a Terra e, acima de tudo, por coincidir com o início do ano em alguns calendários hindus (por exemplo, Gudi Padwa, em Maharashtra), da alegria, celebrada com muitas cores e flores.
- Ashada Gupta Navratri (junho ou julho): o verão chuvoso Indiano, o tempo das monções. Uma estação em que se deve celebrar o poder da natureza de trazer vigor para o verde das plantas e a nutrição dos animais e da humanidade. Deve-se entender que o verão é intensidade, fortalecimento. Então, meditar no verão da alma, que identifico como um auge para a consciência iluminada. Ele nos eleva até obtermos a consciência transcendental, fazendo-nos livres e independentes de atrelamentos para com o mundo material.
- Shardiya Navratri ou Mahanavratri (setembro ou outubro): acontece no outono da Índia, que é o período de finalização das monções. Tal estação deve ser vivenciada como fase de colheita do que foi cultivado com o vigor do verão e de preparação para o recolhimento do inverno. Então, aproveita-se da meditação do mais importante Navratri do ciclo anual para direcionar aspectos da vida para tal finalização no Magha Gupta Navratri.
As datas em que os Navratris acontecem variam anualmente, sendo calculadas de acordo com a cidade exata em que se esteja. Uma boa opção para obter as datas precisas para cada ano e localidade é o Drik Panchang. O cálculo tem relação com as condições astronômicas do universo local, bem como com a posição do planeta para com os demais astros.

As Noites de Durga
Em cada uma das dez noites, se adora e/ou se medita em torno de uma forma específica da Deusa (a Shakti ou a Natureza, poder de Deus). Além do que, as três primeiras noites estão sob influência de Durga (destruição), as três noites seguintes de Lakshmi (sustentação) e as três últimas noites de Sarasvati (criação). As dez formas para cada noite estão dispostas conforme descrito a seguir.
Na primeira noite, adora-se Shailputri. Ela é nascida para o Senhor, sendo a filha da divindade dos Himalayas (Himavat), quem ensina que se deve meditar apenas em Shiva, rendendo-se a Ele por puro amor. Portanto, nessa primeira noite, entrega-se a vida a Deus (à Deusa) de corpo, alma e coração. Ele/a concede tudo o que é preciso para que as circunstâncias nos favoreçam no que é preciso ser feito para que cumpramos com nossos destinos. Quando temos pureza de intenção, tudo está ao nosso alcance. Se tal pureza está diretamente associada a Ele/a, então, nada mais há a se temer.
Shailputri monta o touro Nandi, transporta o tridente na mão direita e uma flor de lótus na esquerda e tem uma lua crescente ornamentando a cabeça. O tridente contém em si todo o poder de criação-sustentação-destruição do aspecto masculino e do feminino do Deus Supremo (de Shiva Shakti). O lótus é o símbolo da espiritualidade exaltada e do cumprimento com o dharma (dever religioso eterno). A lua crescente é a luz da alma em ascensão pela pureza da consciência e pela devoção.
Portanto, na primeira noite do Navratri, deve-se meditar no impulso que vem de dentro do coração espiritual, o qual deseja transcender as dificuldades impostas pela materialidade da experiência. Para tanto, assume-se a unidade de interesses com Shiva, o que significa superar as intenções do ego que não tenham a ver com a realização do dever religioso (dharma). Para ajudar na meditação, há imagens pintadas de Shailputri. Separei uma delas, que pode ser vista, clicando aqui.
As próximas duas noites, sob influência de Durga, pertencem às formas de Brahmacharini e de Chandragantha. Brahmacharini é Parvati fazendo penitência para casar-se com Shiva, e ensinando que tapasya (penitência) é o melhor caminho para alcançar o destino eterno de cada um. Tal destino é o conhecimento de si mesmo mediante o Supremo. Sendo assim, medita-se em renúncia pelo bem maior, o qual é o serviço a Deus.
Sua vontade de fazer penitência tem origem de sua finalidade, a qual é descrita por Narada Muni, em uma passagem do Shiva Mahapurana. O sábio anuncia a Himavat, pai de Parvati, quando ela ainda é muito jovem: “Ó senhor das montanhas, Ela será a esposa de Shiva e permanecerá a favorita dEle sempre. Ela será uma dama casta de bons ritos. Ela aumentará o prazer dos Seus pais. Executando uma penitência, Ela irá fascinar à mente de Shiva em Sua direção. Ele também não se casará com ninguém mais exceto Ela. Um amor parecido com o deste par não será encontrado em lugar nenhum. Nunca no passado nem no futuro haverá algo assim. Nem atualmente há (Shiva Purana Rudresvara Samhita 3.8.27)”.
Brahmacharini é a própria jovem Parvati, obstinada, fazendo penitência para obter Shiva como Esposo. Seu nome em si significa a observância de restrição voltada ao ato meditativo que busca pela liberdade mais perfeita que a alma pode ater. Brahma é a inteligência infinita, que a tudo permeia, consistindo na essência da vida; e charya se refere à dinâmica da vida, a movimentar-se nela rumo, portanto, à mesma essência. Sugiro um texto didático, escrito com palavras acessíveis, que explica como brahmacharya pode ser compreendida como um estímulo a relacionamentos que conduzam à verdade mais nobre (clique aqui, para ler).
Devido à sua condição abstinente, ela veste um sari de cor branca, associado à pureza de intenção. Na mão direita, Brahmacharini carrega uma japa mala, de contas de Rudrakasha, para cantar os mantras de Shiva; e, na esquerda, tem um kamandal, para levar água, um bem necessário para a simplicidade do ato de meditar. Ela está em pinturas, feitas para decoração e/ou para auxiliar na introspecção do devoto (veja essa aqui, por exemplo)
Portanto, na segunda noite do Navratri, deve-se aproveitar do impulso dado pela noite anterior, para reforçar a intenção de viver para o grande achado da vida. Tal achado é o que dá significado para a existência, guiando a mente e as emoções em direção ao que de fato precisa ser vivido pela alma.
Com Chandragantha, fecha-se o ciclo das três primeiras noites. Ela tem dez braços, todos armados, sendo a personificação do poder divino que vence árduas batalhas. Dessa forma, no ciclo das três primeiras noites, medita-se na autoentrega a Deus/a, com a sabedoria da penitência em favor dEle/a e obtém-se a vitória contra qualquer interferência desfavorável. As armas são todos os instrumentos dos quais se faça uso especificamente para cumprir com compromissos para com Ele/a.
Não importa qual o tipo de instrumento, recurso (ou arma) que se faça necessário em diferentes momentos. Assim como em Chandragantha, a qual é armada por Brahma, Vishnu e Mahesh, para que possa exterminar demônios. Dessa forma, Ela é Mãe protetora dos devotos, que reconhecem em suas atitudes o destemor e, ao mesmo tempo, a doçura. Informações devocionais existem e aqui sugiro uma delas, que está neste link. O texto sugerido descreve as dez armas de Chandragantha: tridente (trishula), maça (gada), espada (khadga), gyan mudra (gesto da mão que oferece sabedoria), pote de água (kamandal), flor de lótus, arco (dhanush), flecha (baan), abhaya mudra (gesto da mão que oferece proteção) e rosário de contas (japa mala).
Observando a natureza das armas que Ela transporta, compreende-se que Chandragantha detém do poder de destruir/sustentar/construir, cortando o que é indesejável pela raiz e abrindo espaço para que a pureza da existência se expresse. Tal pureza aflora com espiritualidade, religiosidade e vontade de praticar austeridade, a fim de dedicar a vida à infinita relação com Deus. Chandragantha doa essas bençãos aos devotos e os protege da maledicência.
Portanto, nas três primeiras noites do Navratri, deve-se meditar na vontade de levar uma vida sagrada, límpida e serena, dedicada ao que há de mais profundo na alma (Shailputri). Para tanto, é preciso concentrar-se na autoentrega, buscando por introspecção, desapego e rendição (Brahmacharini). A partir do que, todo poder espiritual estará à disposição da pessoa devotada, a qual, por sua força divina, pode abençoar outras pessoas a também superarem sua natureza humana (Chandragantha).
Deve-se considerar, no entanto, que essas primeiras três noites estão sob influência de Durga (na Tridevi). Sendo assim, ao meditar no processo do Navratri, esse é o momento de concluir com questões em aberto e/ou planejar finalizações.

As Noites de Lakshmi
Já as três noites de Lakshmi consistem em oportunidades para meditar (em) e/ou cocriar a sustentação das conquistas das noites de destruição (de Durga). Isso porque a Shakti aqui é a Consorte de Shri Vishnu, o sustentador da Trimurti (Brahma, Vishnu e Shiva). A Trimurti e a Tridevi são, portanto, o conjunto das três energias e de suas dinâmicas primordiais, respectivamente, nos aspectos masculino e feminino.
Elas não são apenas mitos ou representações, sendo que sua realização enquanto Pessoas Divinas se dá a partir de processo religioso. No entanto, é comum encontrar textos que falam sobre esse conjunto de três divindades masculinas e três divindades femininas como “mitos hindus”, “representações de funções cósmicas”, “deidades materiais”. Esses textos propagam equívocos filosóficos, às vezes propositais, com origens da hegemonia religiosa ocidental e/ou do não aprofundamento filosófico religioso no Hinduísmo e/ou da interpretação de linhas de devoção sectárias.
O fato é que, ao adentrar-se na lila eterna transcendental, onde as narrativas das escrituras existem como realidade divina, pode-se vivenciar as mesmas três Pessoas de Deus (da Deusa). Essa é a verdadeira religião Hindu em sua condição mais íntegra, como ela é para sempre, sem a interferência da mente linear condicionada humana.
Nas três noites de Lakshmi do Navratri, deve-se lembrar dessa verdadeira maneira de ser da Tridevi, meditando em Kushmanda, Skandmata e Katyayani.
Kushmanda é conhecida como a Mãe Divina de onde emana o próprio sol (Surya Deva), a luz que ilumina a vasta escuridão dos universos em criação. Ela é a divindade da purificação, que oferece a dádiva da eternidade para seus devotos. Seu calor é responsável pela nutrição que a Natureza provê a todos os seres vivos.
Ela é ashtabuja (aqui tem uma gravura dEla), ou seja, tem uma forma de oito braços (ashta significa oito), cada um dos quais armados com: disco (chakra), maça (gada), rosário de contas (japa mala), néctar da imortalidade (amrita), flor de lótus, arco (dhanush), flecha (baan) e pote de água (kamandal). Seu veículo de transporte (vahana) é o tigre (Somnandi). Suas armas expressam uma mistura de força para destruir os inimigos do dharma (dever religioso e espiritual), doar perfeições (siddhis) aos devotos e propagar a imortalidade da alma.
Dentro do Navratri, Kushmanda dá impulso à sustentação que se aprofundará nas próximas duas noites. O próximo passo é dado por Skandmata, cujo nome significa literalmente a “Mãe de Skanda”. Ela se mostra para os devotos com Skanda (Kartikeya, Murugan) nos braços, Seu filho e de Shiva. Kartikeya tem seis cabeças, por ter nascido do sêmen de Mahadeva, sendo criado pelas seis matrikas (as Kartikas). Imagens de sua adoração e da recitação de um stuti são bem inspiradores (veja aqui).
Stuti é um tipo de hino que presta reverências a uma Deidade em particular. No caso de Skandmata, por ser a forma da Deusa que expressa a Mãe de Skanda, Ela deve ser percebida como a protetora das regiões celestiais. Além do que, por ter aceitado a maneira como Kartikeya nasce e é criado por outras mães que não Ela mesma, Durga ensina, através dessa Sua maneira de ser, que é preciso cumprir com nossas atribuições, mesmo que isso às vezes signifique renunciar a uma situação de deleite e/ou de uma posição de destaque onde precisamos estar situados.
Na verdade, o casamento de Shiva com Parvati acontece pela motivação da necessidade do nascimento de Kartikeya. O passatempo transcendental se caracteriza por um momento de tensão entre os Semideuses, que estavam sob ameaça do demônio Tarkasura. O asura tinha recebido uma benção de Brahma e só poderia ser morto por um filho do Casal Supremo. Só que Mahadeva estava em meditação e não desejava mais se casar, depois da saída de Sati (outra forma de Parvati) do passatempo em que Daksha, o pai dEla, desrespeitara o próprio Shiva, por arrogância e presunção.
O casamento de Shiva e Parvati se dá e Skanda nasce. Além de transportá-lo, Skandmata tem um leão como veículo de transporte, o que é fruto do poder inerente à Sua natureza. Essa forma da Deusa também se caracteriza por apresentar quatro braços, sendo que, as duas mãos superiores seguram uma flor de lótus cada. Uma das mãos do braço inferior segura Skanda e a outra oferece proteção através do abhaya mudra. Pode-se dizer que Ela é a Deusa que nutre a divindade em cada um dos Seus filhos, sendo sucedida, nas Noites do Navratri, por Katyayani.
Essa forma da Deusa é reverenciada principalmente por dois motivos: sua ferocidade na proteção do dharma, o dever religioso para com a Terra, a sociedade e Deus; e seu dom de fornecer às mulheres bons casamentos e felicidade no matrimônio. Nos templos, Ela aparece com uma forma de quatro braços, sendo que um deles segura uma espada (khadga), a qual é arma que corta o mal pela raiz; outro segura uma flor de lótus e dois deles executam mudras de bençãos e proteção.
Em outra forma, Ela tem entre cinco e nove pares de braços, todos armados (como essa da foto), tendo aparecido a partir de um ato de criação/sustentação/destruição de Brahma, Vishnu e Shiva. Nesse caso, Katyayani nasce para destruir Mahishasura, um demônio metade búfalo, metade homem, que recebera a benção de Brahma de só poder ser vencido por uma mulher. Para vencê-lo, a Deusa é poderosamente armada pelos semideuses e pela própria Trimurti. Seu aparecimento é associado a um grande sábio (Maharishi), chamado Katyayan, que desejou ter Parvati como filha, se penitenciando intensamente com tal objetivo. Ela de fato nasce como filha dele (Katyayani), a fim de cumprir com a missão de aniquilar com o grande demônio, Mahishasura.
Além do que, sabe-se que as gopis (vaqueirinhas) amantes de Krishna, em Vrindavana, adoraram Katyayani, às margens do rio Yamuna, a fim de atê-lo como Consorte. A Deusa as abençoou e elas eternamente performam a dança da rasa junto do seu visaya (objeto de adoração). Por esse motivo, Katyayani é adorada pelas moças que desejam um casamento adequado e pelas mulheres casadas, a fim de ter sorte no casamento. Em Vrindavana, existe um Shakti Peeth de Katyayani, um templo que demarca o local sagrado, onde fios de cabelos de Sati, cujo corpo morto foi cortado em pedaços pela sudarsana chakra de Vishnu, caiu (veja aqui).
Pode-se compreender, portanto que, nas três noites de Lakshmi do Navratri, a sustentação da meditação e do voto acontece através de um impulso de se obter iluminação para a escuridão do mundo (por Kushmanda). Esse impulso origina a sabedoria, através da qual se pode transpor falsas impressões de fragilidade (sob as bençãos de Skandmata). Então flui amor divino para a vida de quem medita, na forma de vitória contra o mal e/ou sorte nas interações pessoais (por Katyayani).

As Noites de Sarasvati
As últimas três noites propagam ondas de amor divino através dos pensamentos dos devotos que meditaram de maneira concentrada e devotada ao longo das noites anteriores. As questões em aberto que foram concluídas e/ou cujas finalizações foram planejadas nas três primeiras noites (de Durga), tendo tais conquistas da mente e do coração sido sustentadas nas noites de Lakshmi, agora devem ter atingido certo estado de amadurecimento. Elas fluirão, a partir desse momento, de um jeito mais condizente com a paz de espírito que é necessária para a vida devocional.
Trata-se das noites do Navratri regidas por Sarasvati, a Deusa da criação, da inteligência geradora de novos começos, dos estudos e do conhecimento sagrado. Ela é a Esposa de Brahma (o Criador, na Trimurti) e, portanto, irá impulsionar o que precisa começar a haver para que a experiência de quem medita nas Nove Noites da Deusa seja engrandecida, desde o ponto de vista espiritual e eterno.
A primeira de tais três últimas noites, deve ser dedicada à forma, que para muitos pode parecer agressiva, devido ao seu imenso poder de destruição, Kalratri. Sua aparência é também muitas vezes mal compreendida pelos que a desconhecem. O fato é que Kalratri se mostra com aparência escura, cabelos volumosos e desarranjados, montando um burro e quatro braços. Na mão direita superior, ela segura uma foice; e na inferior, um dispositivo com ganchos altamente letal.
Nas mãos esquerdas, Kalratri oferece bençãos (varada mudra) e proteção (abhaya mudra), sendo, portanto, a Deusa que têm armas para destruir, pois protege os que merecem ser protegidos através da destruição. É possível buscar por sua proteção contra tendências demoníacas do mundo e das pessoas, usando de mantras (veja esse aqui, por exemplo). Na sétima noite do Navratri, Ela irá trazer impulso criativo baseado na destruição de condições que desfavorecem o devoto.
A seguir, na oitava noite, existe a influência de Mahagauri sobre a meditação. Ela é uma jovem com aparência eterna de 16 anos de idade, sendo a encarnação da pureza e da graça espirituais da Deusa. Seu veículo é o touro Nandi e seu sari é branco. Ela carrega um damru (tambor) na mão superior direita e o trishul (tridente) na superior esquerda. As outras duas mãos executam mudras de bençãos e proteção.
A lila associada a tal aparecimento da Adi-Shakti reconta o longo período de penitência a que Parvati se entrega, desejando intensamente casar-se com Shiva. A austeridade é tão poderosa que sua pele se torna escura, mas Mahadeva, após aceitá-la em casamento, oferece-Lhe um banho do Ganges, que clareia sua pele e a revitaliza. Sua aparência juvenil reflete sua bem-aventurança ao atingir Sua meta com tanta perfeição. Mahagauri expressa o auge da beleza, delicadeza e, ao mesmo tempo, poder. Ela irá direcionar o devoto a alcançar sua meta também, que pode ser provisória, tendo a ver com situações materiais, as quais, no entanto, são necessárias para que se possa chegar à perfeição espiritual da experiência.
É possível encontrar puja sendo executado para ela (e as outras formas aqui apresentadas), por um certo valor em dinheiro, como o que aparece nesse catálogo.
Finalmente, na nona noite do Navratri, deve-se meditar em Siddhidatri, a doadora de poderes (siddhis). Ela veste sari vermelho e aparece sentada sobre uma flor de lótus. Na mão superior direita, Siddhidatri carrega o chakra (disco) e, na esquerda, uma concha (shanka). Na mão inferior direita, ela carrega uma maça (gada) e, na esquerda, uma flor de lótus (padma). A chakra e a maça são instrumentos de destruição do que serve ao bem e ao dharma (dever espiritual). A concha anuncia a criação divina e tudo o que tenha poder de transformação espiritual, enquanto a flor de lótus é a pureza em si. Portanto, pode-se meditar no alcance da meta da vida, sob proteção dEla.
Siddhidatri é a Mãe Divina em sua forma criadora, pois é quem desenha, com Mahadeva, a forma primordial dos universos e das divindades. Ela é a Mahashakti em Pessoa, a contraparte feminina de Shiva, que está em Ardhanareshvar. Os poderes que ela doa são assim enumerados: anima (de ficar diminuto e invisível), mahima (de se tornar muito grande), garima (de se tornar pesado demais), laghima (de ficar sem peso nenhum), prapti (da onipresença), prakambya (de obter tudo o que se deseja), Ishtva (de ter todos os poderes) e vashistva (de conquistar qualquer coisa). Há um templo dEla em Varanasi, o qual pode ser contemplado virtualmente (veja aqui)
Portanto, nas noites de Sarasvati, há o impulso de destruição do que não serve para que se possa cumprir com o dharma (Kalratri). Esse impulso é sustentado através da sabedoria e da pureza da autoentrega perfeita para Deus, mesmo que isso exija penitência e austeridade (Mahagauri). Então se obtêm o que for preciso (Siddhidatri).
Lições do Navratri
São muitas as formas que a Deusa assume para se mostrar para nós, os(as) devotos(as) do Hinduísmo. Alguns acreditam que tanto as formas quanto as histórias das divindades são apenas alegorias, mitos e lendas, como os impersonalistas. Devotos impersonalistas buscam por Deus apenas enquanto energia impessoal, a qual aceitam estar dentro deles mesmos. Mas para quem entende as Divindades do Hinduísmo como Pessoas Divinas eternas, com as quais devotos podem se relacionar, seja desde um ponto de vista impessoal e/ou pessoal, Elas têm formas transcendentais ao mundo material e suas histórias acontecem realmente em dimensões não materiais.
É a essa segunda maneira de perceber a Deusa no Hinduísmo que o presente texto se refere. Portanto as meditações aqui propostas devem ser conduzidas com intenção de se ater a Divindade na individualidade de quem medita, seja enquanto arquétipo da alma, seja enquanto Divindade Pessoal, que abençoa e rege a vida de quem a Ela se devota.
As nove formas do Navratri não devem ser confundidas com as Dasha Mahavidyas. Dasha significa dez, maha é grande (ou maior) e vidya é conhecimento. As Dasha Mahavidyas são dez formas ou qualidades da Deusa, de Durga. Elas têm outras conformações, diferentes e complementares às nove formas do Navratri. Todas essas formas não se esgotam, pois são infindáveis as maneiras da Divindade se expressar, expressando a infinita benevolência de Deus, nos seus aspectos masculino (Brahma, Vishnu e Shiva) e feminino (Sarasvati, Lakshmi e Durga). Que sejam elas compreendidas com a máxima clareza possível no mundo linear de Kali Yuga, para que possam continuar povoando as esferas sutis do planeta, protegendo e abençoando seus devotos e devotas.
