As Divindades do Hinduísmo não são Mitológicas: adentrando nas moradas de Krishna, Vishnu ou Narayana
|Introdução
Esse texto mistura duas tendências – uma científico-religiosa e outra filosófico-religiosa. Isso porque tenho estado pensando minhas percepções espirituais também a partir do ângulo de compreensão das coisas do mundo material que a Ciência me proporciona. Faço a mistura por ser ela necessária para essa época, quando a academia é bastante influente.
Dentro de tal mistura, começo afirmando que as Divindades do Hinduísmo não são mitológicas, pelo menos não segundo a percepção ocidental do que significaria mito dentro da experiência religiosa. Pois, mito para o ocidental se refere ao que não tem existência, pertencendo apenas ao universo subjetivo de determinada tradição[1]. Há diferença, portanto, entre a realidade divina e o mundo dos mitos conforme tal percepção.
Começo aqui explorando essa distinção, pois ela é crucial para que possamos alcançar o objetivo do presente texto. É preciso esclarecer a consciência humana acerca de uma realidade que eventualmente possa estar lhe escapando da compreensão.
Faço proveito do livro intitulado “O que é mito”, de Everardo Rocha[2]. O autor descreve mito como uma narrativa que possui e organiza símbolos, sendo capaz de ser distinguido de outros tipos de narrativas. “Serve para significar muitas coisas, representar várias ideias, ser usado em diversos contextos” – escreve ele. Sendo ainda algo fabuloso, coisa inacreditável, sem realidade, segundo tal definição.
Por sua vez, buscando uma definição para a experiência religiosa, volto-me aos escritos de Croatto (2010) sobre as várias linguagens da experiência religiosa. Elas contêm muitos símbolos, os quais, conforme o autor explica, são condensadores tanto de desejos inconscientes, quanto de “uma experiência religiosa profunda da perfeição, da totalidade, do equilíbrio espiritual em contato com o sagrado”[3].
Como parte de tais mecanismos, ao invés de algo inacreditável e sem realidade (mitológico), as formas das Divindades do Hinduísmo e suas histórias existem para torná-las memoráveis. Afinal, conforme Tim Ingold propõe: “aquilo que não puder ser lembrado sairá naturalmente de circulação e, portanto, não ficará retido na cultura”[4]. Croatto (2010) também fala da “extinção do símbolo” religioso, o que pode acontecer pela objetivação racional do sentido dele (do símbolo) através de algo exterior à cosmovisão religiosa.
Segundo o autor, a objetivação se dá de diferentes maneiras: a) por uma explicação do sagrado a partir da experiência comum; b) pela tradução em linguagem racional do sentido de um símbolo; c) pela intelectualização de algo que tem origem divina.
Uma mistura disso tudo vem acontecendo com o Hinduísmo, sua historicidade e simbolismos, o que foi causado a princípio pela tentativa britânica de colonizar a Índia; e em ato contínuo pelo fenômeno da globalização, que tem promovido extinção de simbolismos da religião Hindu, reduzindo-os a mitos traduzidos em linguagem racional.
Esse texto faz parte de um processo que visa salvar elementos de tal religiosidade por meio de um diálogo entre ocidente e oriente e entre Ciência e Religião. Ele aborda uma das Divindades mais importantes, procurando mostrar que a realidade transcendental é profunda verdade, mas não pode ser explicada como algo exterior à cosmovisão religiosa em si.
Krishna, Vishnu ou Narayana
Quando menciono a possibilidade de salvar elementos da religiosidade Hindu, me refiro a linguagens da experiência religiosa profunda. Dentre eles, esse artigo especificamente aborda uma das maneiras do Supremo Senhor se apresentar para Seus devotos. Ele assim o faz como uma Pessoa, o absoluto criador, preservador e aniquilador das regiões cósmicas e universais.
Tal Pessoa Suprema nos ensina que, por sua ação, os mundos são estabelecidos e sustentados, e continuamente transformados dentro do processo evolutivo que contém toda Ordem. Seus ensinamentos alcançam a percepção humana através das escrituras, do(a) mestre(a) espiritual e/ou diretamente por iluminação transcendental.
Mas, Krishna, Vishnu ou Narayana está além da compreensão humana meramente racional, porque é o ilimitado, que não tem um começo nem um fim. No entanto, Ele contém em si o começo e o fim de tudo o que é, do que existe e que está por existir.
Em detrimento de tais predisposições humanas aos sectarismo e ao preconceito religioso, a refulgência de Krishna (Brahman) o manifesta, sem fornecer livre acesso à Sua Pessoa Suprema (Bhagavan), a qual contém todas as opulências. Além do que, todas as almas viventes o contêm em seus corações (Paramatma) e, portanto, podem encontrá-lo dentro de si mesmas. Para vivenciar a experiência com Bhagavan é preciso alcançar a realização filosófica dEle enquanto Pessoa, a partir de quem emana o Brahman, que está em tudo.
Sendo o Senhor de todas as manifestações da existência, Ele pode se manifestar na forma que desejar se manifestar. Por esse motivo, existem tantas religiões, de modo que o pensamento sectário e desrespeitoso para com a crença do próximo é fruto unicamente da intolerância religiosa e do preconceito. Ideias preconceituosas servem a interesses próprios, sendo mais facilmente assimiladas, de maneira acrítica e passiva, sem refutação por argumentos racionais, pelos favoravelmente predispostos[5].
Reconhece-se que esse encontro com Deus conduz a alma à iluminação (samadhi) e à liberdade dos ciclos de nascimentos e mortes (moksha). Aquele que, mesmo ainda permanecendo atrelado a um corpo físico, re-encontra com Krishna – a Pessoa Suprema -, e com Ele estabelece um convívio íntimo (bhakti rasa), está situado em alinhamento perfeito com o Corpo Divino (siddhadeha).
Tal intimidade com Deus existe em um estágio avançado de consciência espiritual, o qual preenche a vida de Amor Puro pelo Divino Senhor (prema). Todas essas compreensões são filosóficas, podendo ser obtidas a partir do convívio com alguém que as vivenciou filosoficamente e/ou diretamente por autorrealização, sendo o segundo processo muito raro na época atual, quando a sociedade se encontra em um estado profundamente materialista e positivista[6],[7].
Vaishnavismo: moradas e avataras de Deus
O Vaishnavismo é uma das três principais vertentes do Hinduísmo, ao lado do Shaivismo e da Shaktismo. Para os Shaiva, Shiva é o principal nome de Deus; e para os Shakta, Durga (a Devi) ocupa tal posição. Krishna, Vishnu ou Narayana são três dos principais nomes de Deus, dentro da cultura Vaishnava.
Na percepção Hindu, de maneira geral, Vishnu é o responsável pela sustentação dos Universos, integrando a Trimurti, com Brahma e Shiva. No Vaishnavismo, é o mesmo Vishnu que contém à Mente Absoluta da Suprema Personalidade, sendo Vishnu, Krishna e Narayana nomes dados à mesma Pessoa. Existem outros nomes, no entanto, podendo ser encontradas menções a 1.000 denominações dEle (veja aqui).
Segundo a percepção Vaishnava, esta Absoluta Divindade contém em si todas as energias que manifestam os múltiplos aspectos da vida. Tais energias se personificam, detendo também de nomes específicos e qualidades que lhes são características de acordo com suas atribuições dentro da anatomia transcendental do Senhor.
Para um Vaishnava, Deus se manifesta nas energias masculina (Krishna, Vishnu ou Narayana) e feminina (Radha, Lakshmi ou Shri), contendo expressões pessoais internas e externas. Suas expressões internas compõem Seu mundo pessoal, e os impulsos co-criativos que lhes são íntimos. Sua vida pessoal existe em três moradas: Goloka, Vaikuntha e Svetadvipa.
Essas moradas só podem ser acessadas por aquele(a)s que compreendem a realidade transcendental delas, sem precisar usar do raciocínio linear. Portanto, a mente racionalista e positivista dessa época não tem como compreendê-la e muito menos acessá-la. Por esse motivo, costuma identificar tais moradas e o que acontece dentro delas com lendas e mitos, contribuindo com uma visão de algo sem realidade, prestes a sair de circulação e, por consequência, suscetível a extinção.
Mesmo entre os Hindus, percebe-se o poder de tal raciocínio com origem ocidental, desagregador de sua própria identidade religiosa. Para fazer frente a esse tipo de mecanismo, com origens na globalização, que pode aflorar em qualquer país e em distintas comunidades, estabeleceu-se o conceito de Patrimônio Cultural Imaterial (PCI). O termo surgiu na 32ª Conferência Mundial da UNESCO, realizada em Paris, em 2003. Ele abrange as tradições e expressões orais, práticas sociais, rituais, eventos festivos, conhecimentos/práticas relativas à natureza e ao universo, além de artes e artesanatos tradicionais. Duarte (2010, p. 48) sugere “um conflito, entre uma visão da dinâmica social no presente, necessariamente ligada a um tempo, a um espaço e à respectiva comunidade de praticantes, e uma visão de conservação do passado que inevitavelmente o imobiliza e descarta os seus atores[8]”.
O fato é que, havendo ou não uma dinâmica social do presente momento global, a integridade da experiência religiosa profunda que as Divindades do Hinduísmo proporcionam à humanidade só permanecerá se houver mecanismos de diálogo com os processos da globalização. No entanto, tal diálogo não pode implicar em perda dos significados dos simbolismos pela objetivação racional dos sentidos deles causada por elementos exteriores à cosmovisão religiosa a que eles pertencem.
Caso contrário, não haverá mais a esfera sutil das lila de Krishna, dEle que eterna e ciclicamente nasce em Mathura – atual estado de Uttar Pradesh – e que precisa ser escondido do Seu tio Kamsa, cuja mente demoníaca deseja eliminá-Lo. A esfera da Vraja transcendental, na qual esse vaqueirinho é criado por Nanda Maharaja e Yashoda; e onde mata tantos demônios enquanto se diverte com os gopas e as gopis (vaqueirinhos e vaqueirinhas).
Também não haverá a Dwarka transcendental, onde Ele, em sua fase adulta, se torna rei e esposo de 16.108 rainhas, dentre as quais, a principal é Rukmini.
São essas concepções de vida fundamentais para a consciência que vivencia a mais um momento de crise das condições planetárias, quando Ele sempre “desce”, manifestando-se através de alguma de Suas formas avatáricas, o que acontece quando as condições planetárias se tornam excessivamente inóspitas devido ao avanço do materialismo e ao distanciamento de Deus por parte da grande maioria dos habitantes do globo.
Não estaríamos vivendo uma etapa da história desse tipo, na qual a visão cartesiana-newtoniana de mundo predomina (ver nota 6 no final do artigo)? Torna-se ainda mais evidente a necessidade de dar manutenção a tal cultura imaterial religiosa, mesmo que seja por meio de medidas que não obriguem à imobilidade, nem impeçam as comunidades praticantes de estabelecerem novas “conexões criativas com o passado”[9], o que faz parte de um debate contemporâneo importante ao qual o presente texto pretende se fazer aderente.
[1] CROATTO, J. S. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2010.
[2] ROCHA, E. O que é Mito. São Paulo: Brasiliense, 2012.
[3] CROATTO (2010, p. 115).
[4] INGOLD, T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010.
[5] SOUZA, G. M.; FICAGNA, L. R. D. Do preconceito à intolerância religiosa. Revista EDUC – Faculdade de Dique de Caxias, v. 3, n. 2, p. 54-74, 2016.
[6] Trata-se de um estado de acumulação de capital, pautado pelo materialismo pragmático, o qual se desenvolveu sob forte influência de René Descartes (1596-1650) e Augusto Comte (1798-1857). Segundo a lógica apresentada por Moraes-Júnior, Christ e Celanti (s/d), para Descartes procedimentos de indução e dedução científicas substituíram a religião na explicação do mundo, a partir do que, as verdades das coisas se tornam tão completas e gerais, a ponto de não ficar nada a dizer. Em complemento a essas ideias, Comte defende a tese da evolução do ser humano em três estágios, os dois primeiros teriam sido o Teológico e o Metafísico, provisórios e preparatórios para o terceiro estágio, o Positivista. Ele coloca os estágios iniciais como sendo, respectivamente, de busca pelo “sobrenatural” e de preocupação com “questões insolúveis e desnecessárias”, como momentos iniciais da consciência humana, que atingiria um estágio definitivo – o Positivo. Em tal estágio, “a razão emancipada da imaginação não se preocupa mais com as pesquisas absolutas e metafísicas, mas com observação, única base possível dos conhecimentos realmente acessíveis, criteriosamente adaptados às nossas necessidades efetivas, segundo Comte” (MORAES-JUNIOR; CHRIST; CELANTI, s/d, p. 9). Portanto, são tais pensamentos fundantes do capitalismo materialista em que vivemos atualmente, quando muitos tendem a desmerecer o conhecimento sensível e espiritual da existência.
[7] MORAES-JUNIOR, L. R.; CHRIST, F. M.; CELANTI, R. E. A globalização descartável: as principais noções que fundamentam a racionalidade do viver na Era do Capital. [s/d]. Disponível em: http://www.ienomat.com.br/revistas/pedagogia/journals/1/articles/178/public/178-570-1-PB.pdf. Acessado em: 19 dez 2022.
[8] DUARTE, A. O desafio de não ficarmos pela preservação do Patrimônio Cultural Material. In: SEMINÁRIO DE INVESTIGAÇÃO EM MUSEOLOGIA DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA E ESPANHOLA, 1., v. 1, Porto, 2010. Atas (…). Porto: Universidade do Porto, 2010. p. 41-61.
[9] Lowenthal (1985, p. 364) citado por Duarte (ver nota 8).