Hinduísmo Integral: introdução ao conceito
|Introdução
Ao tentar encontrar uma maneira de começar a escrever sobre o conceito de Hinduísmo Integral, encaro a questão da existência de hierarquias e rivalidades na Índia, inclusive dentro do próprio Hinduísmo. Dentro disso, relata-se que “o culto a divindades populares entre castas baixas do norte da Índia, como Bhavani e Parmeshwarie, foi insistentemente estigmatizado pelas lideranças sanatanistas”[1].
Há aqui duas questões importantes, uma se refere ao preconceito dos que se identificam como pertencentes a castas mais elevadas; e outra de rivalidade para com divindades e processos de adoração.
A divisão da sociedade em castas no país indiano vem sendo duramente criticada, o que foi importante aspecto do movimento liderado por Mahatma Gandhi (1869-1948)[2]. Ele desejava um país livre da tirania do domínio britânico e das injustiças do sistema de castas da Índia. Ao mesmo tempo, o desrespeito à multiplicidade de crenças religiosas é também objeto de crítica, pois
“mesmo com a liberdade de culto ainda ocorre um conflito entre religiosos, em que acabam por gerar guerras, mortes, conflitos, falta de respeito à religião do outro, tudo isso, por acharem que a sua religião é a melhor e a única que poderia existir, como se não pudesse haver visões e crenças diferentes das suas, é o que chamamos de intolerância religiosa[3]”.
Desta forma, se torna fundamental que as religiões se organizem em sua própria diversidade de manifestações, compreendendo suas vertentes e propagando tolerância entre seus devotos. O conceito de Hinduísmo Integral vai de encontro com tal necessidade e nasce a partir de algumas inquietações. Uma delas foi vivenciada pela autora do texto quando, após vários anos de fé Hinduísta, praticante profunda, estudiosa e Guru Ma ocidental, teve acesso negado a pelo menos dois ou três templos Hindús na Índia e no Nepal.
Outra questão que gera desconforto é o desrespeito entre abordagens, quando devotos de uma linha de fé diferente da sua procuram desautorizar suas compreensões filosóficas, práticas e os processos que você segue. Isso é muito comum, assim como também o tratamento dado por alguns indianos a devotos ocidentais, tratando esses últimos como não Hindús e/ou como neófitos, independentemente do aprofundamento devocional que ele/a tenha.
Enfim, quer-se fazer compreender por Hinduísmo Integral o conjunto de todas as manifestações religiosas, das maneiras de se expressar dos devotos nas mais diversas vertentes, dos ritos conforme eles são propagados e muito mais. Trata-se de um conjunto heterogêneo de maneiras de apreender filosoficamente as principais conclusões das escrituras, manifestando tal apreensão em múltiplas formas rituais, nos mais diversos calendários e em muitas celebrações.
A presente introdução ao conceito faz parte de uma construção acadêmico religiosa, a qual dará espaço a um apanhado teórico sobre tolerância religiosa, diversidade cultural e de espiritualidade, além de outras questões que se intercruzam, dando conformação ao que aqui se propõe a começar a construir.
Origem da multiplicidade Hindú
Para o devoto do Hinduísmo as tentativas científicas de datar seu aparecimento são todas infrutíferas, pois, como o conceito de sanathana dharma diz, ser Hindú constitui um compromisso eterno que se tem para com a existência. O Hinduísta segue tal dharma ou sagrado e eterno compromisso/dever por aplicação de leis cósmicas e divinas, as quais são atemporais.
Informações imprecisas sobre prováveis períodos de surgimento do Hinduísmo incomodam a leitura por quem é religioso de textos acadêmicos que tentam falar sobre as origens da religião. Ao mesmo tempo, alguns desses trabalhos ajudam a refletir sobre a multiplicidade Hindú. Em um deles encontro menções a fatos que causam a diversidade de interpretações do Hinduísmo, como: a) a não existência de um fundador ou figura referencial; b) o uso de diversos objetos da natureza para perceber Deus[4]. “A importância não está no objeto em si, mas na fé que o indivíduo nele deposita” – escreve esse autor.
Outras questões podem ser consideradas como parte de tal multiplicidade. Elas se referem à própria identidade Hinduísta, pois, desde um ponto de vista sócio-histórico e geográfico, o termo Hindú se refere ao povo do Hindustão. Só que este mesmo nome, Hindustão, embora tenha sido empregado em textos de história, narrativas de viagens, correspondências oficiais, mapas e atlas, acabou sendo substituído por Índia durante a segunda metade do século XIX[5].
A partir de tal origem, o sufixo “ismo” foi acrescentado ao termo Hindú para se referir à cultura e à religião, que é majoritária na Índia e no Nepal, mas que é também praticada em outros países da Ásia, Europa, América, África Oriental e Austrália[6]. Alguns chegam a propor que não exista uma religião propriamente Hinduísta, pelo fato de não existir um fundador, uma hierarquia religiosa única e organizada, uma teologia oficial ou uma forma de culto consensuada. Em contraposição a esses fatos, existe uma essência, uma identidade, a qual diferencia os Hindús dos Cristãos, Muçulmanos, Budistas e outros religiosos[7].
É em torno de tal essência e de tal identidade religiosa que se pretende trabalhar ao se estabelecerem os alicerces conceituais do Hinduísmo Integral. Isso envolve o processo de transnacionalização de práticas e crenças do Hinduísmo que não pode ser considerado apenas como “transplante”, mas, sim como reinterpretação, apropriação e ajuste, realizado por distintos intermediários culturais, do que deriva o Neo-Hinduísmo[8]. Portanto, há ainda mais complexidade a se considerar, quando se compreende que ser Hindú é algo tão múltiplo em sentidos e significados.
Aspectos da diversidade Hinduísta e do Hinduísmo Integral, portanto
Trata-se de uma tarefa complexa caracterizar a essência ou unidade fundamental que há na multiplicidade do Hinduísmo, para o que, é necessário considerar suas variadas correntes, ideias, filosofias e práticas, nos âmbitos geral e particular e nos contextos global e local[9]. Mas, existem obras que descrevem tal multiplicidade com detalhes.
Alguns aspectos importantes a considerar são: as quatro tradições ritualísticas dos Vedas – Ṛgveda, Yajurveda, Sāmaveda e Atharvaveda; os dois principais tipos de rituais védicos (yajña) – śrauta e gṛhya; a astrologia (jyotisa) e a medicina (ayurveda) Hindús; os calendários solar e lunar; as categorias sócio-ocupacionais do Hinduísmo – varna e jati; os ritos Hindús de passagem (samskara) e os estágios de vida (asrama); literaturas importantes – Ramayana, Mahabharata, Bhagavad Gita, Sangham, dos Alvars e dos Nayanars; as tradições teístas – os Paśupatas, os Vīraśaivas e o Gorakṣanātha ligados ao culto de Śiva, os Bhāgavatas, o Pañcarātra, os Vaikhānasas, os Gauḍīya Vaiṣṇavas; as tradições vedānticas ligadas ao culto de Viṣṇu e os modos de culto a Devī no Śaktismo[10].
Tudo isso pode estar presente em diferentes composições e proporções, o que implica em diversidade. Além do que, deve-se considerar os efeitos da expansão do Hinduísmo ao mundo ocidental, “abalando as tradições védicas, o sistema de castas, e o brahmanismo”[11]; e causando a “orientalização” do ocidente, o que promove um novo modo de enfocar antigos problemas a partir de concepções do divino e da relação entre a humanidade e o mundo de tradições orientais, incluindo o Hinduísmo[12].
Quanto à essência ou unidade fundamental, enquanto praticante ocidental, sob influência da ciência pós-moderna e da religiosidade da denominada Nova Era, vivencio alguns pontos que me parecem centrais. Eles são:
- uma percepção mais clara da sacralidade da natureza, pois Deus e a Natureza são Shiva (ou Vishnu) e Shakti (purusha e prakrti);
- a necessidade de uma vida sem violência, por aplicação dos princípios de ahimsa;
- as celebrações e os rituais seguem a ordem cósmica e astrológica e a vida humana deve estar em uníssono com eles;
- embora não haja lógica para manter o sistema de castas na atualidade, os estágios de vida (asramas) devem ser respeitados, pois denotam o estado de consciência de cada um que espontaneamente se revela;
- as tradições dos Vedas e as literaturas importantes para as tradições Shaiva, Vaishnava e/ou Shakta compõem o centro da dinâmica do intelecto do/a devoto/a;
- os rituais védicos (yagna), a astrologia(jyotisa) e a medicina (ayurveda) Hindús expressam a sabedoria de tal eterno compromisso para com a existência (sanathana dharma);
- a multiplicidade de manifestações do Hinduísmo faz parte de sua integralidade e a não aceitação sectária de tal verdade não é condizente com o que a religião Hindú de fato é – um conjunto complexo de conhecimentos e de práticas;
- as narrativas e a vivência das histórias das divindades do Hinduísmo preenchem a experiência de significados sagrados e dão acesso à realidade profunda cosmológica e divina para muitos Hindús.
Considerações finais
Mesmo ao escrever a lista de pontos que me parecem centrais, sei que pratico um aspecto do pensamento devocional Hinduísta, já que o Hinduísmo Integral contém muito mais do que uma única maneira de compreendê-lo. Portanto, a questão de hierarquias e rivalidades dentro do Hinduísmo não é coerente com tal conceito. No entanto, deve ser compreendida como parte dele, pois deriva da divisão da sociedade em castas no país indiano e a falta de organização do Hinduísmo de sua diversidade de manifestações e vertentes.
A falta de organização, por sua vez, está sem dúvida relacionada a não existência de um fundador único ou figura referencial. Isso promove até mesmo a carência de uma posição única com relação à própria identidade Hinduísta. A origem sócio-histórica e geográfica do termo Hindú, ao se referir ao povo do Hindustão, dá margens a uma interpretação restritiva do Hinduísmo, ausente de sua posição global, que é a de uma religião que transpôs as fronteiras sócio-históricas e geográficas originárias.
Mas, a partir do muito que se tem analisado e escrito, desde um ponto de vista científico religioso mais abrangente, é Hinduísta quem se identifica como tal. Para se identificar com o Hinduísmo, o/a devoto/a precisa seguir algumas das correntes, ideias, filosofias e práticas Hindús, mesmo que não tenha nascido e/ou que não viva na região onde originalmente o Hinduísmo nasceu (e de onde tem origem o nome da religião e dos seus adeptos).
O Hinduísmo Integral promove tais compreensões, abrangendo um complexo de conhecimentos – populares, religiosos, culturais e científicos -, modos de vida, rituais, celebrações e práticas cotidianas. As categorias sócio-ocupacionais e os ritos de passagem entre etapas da vida podem não ser resguardados, o que depende das demais interações com a sociedade que circunda o/a devoto/a.
Mas, os estágios da vida (asrama), as literaturas, as tradições, as divindades, os templos e as paisagens sagradas da Índia, tudo isso deve integrar a fé de quem se identifica com o Hinduísmo. Ele será integral caso haja a consciência do todo que compõe a religião e suas inúmeras e diversificadas manifestações na unidade do que se reconhece como uma mundial manifestação de fé e devoção.
[1] MELLO, M. M. Leituras sobre o Hinduísmo caribenho: etnografia e história. Disponível em: https://revues.mshparisnord.fr/cultureskairos/pdf/1607.pdf. Acessado em: 4 fev 2023.
[2] UNIDOS PELOS DIREITOS HUMANOS. Defensores dos direitos humanos: Mahatma Gandhi (1869-1948). Disponível em: https://www.unidospelosdireitoshumanos.org.br/voices-for-human-rights/mahatma-gandhi.html. Acessado em: 5 fev 2023.
[3] CORRENT, N. Diversidade religiosa: uma temática em debate. [s.d]. Disponível em: https://semanaacademica.org.br/system/files/artigos/nikolas_corrent_diversidade_religiosa.pdf. Acessado em: 5 fev 2023.
[4] ANDRADE, J. “Quando o Himalaia flui no Ganges”: a influência da Geografia do subcontinente indiano sobre a configuração do Hinduísmo. Interações – Cultura e Comunidade, v. 5, n. 7, p. 39-58, 2010.
[5] BARROW, I. J. From Hindustan to India: naming change in changing names. South Asia: Journal of South Asian Studies, v. 26, n. 1, p. 37-49, 2003.
[6] CORREA, F. L. El Hinduismo: consideraciones históricas y conceptuales. Intus-Legere Historia, v. 6, n. 1, p. 45-62, 2012.
[7] Idem nota 6.
[8] D’ANGELO, A. De swamis a gurúes. Uma genealogia histórica de los tipos de Yoga practicados em Argentina: entre el Neo-Hinduismo y la Nueva Era. Sociedade y Religion, v. 28, p. 101-134, 2018.
[9] Idem nota 6.
[10] CARVALHO, M. L. Tradições religiosas, filosofias e história: uma introdução ao Hinduísmo por Hillary Rodrigues. Sacrilegens, v. 14, n. 2, p. 99-107, 2017.
[11] MOROTTO, L. Q. Além do Ganges: rituais Hinduístas na urbe paulistana. Fenômeno de ressignificação religiosa numa metrópole ocidental. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2007. p. 33.
[12] Idem nota anterior.
Hace muchos años que haciendo un curso de comida Hindue,tome mi primer contacto con Krishna,desde ese momento mi corazón mudou.desde que me conozco siempre amei a India,por libros,tele,mi padre,empezando a estudiar mi interese era enorme y mi sueño era conocer India fui dos veces visite Izcon ,templos,oferendas,no quería volver a España. Tengo mi altar,escucho música el mantra,necesitaba tener un grupo y aprender más.Aribol
¡Gracias por su cálido comentario sobre el Hinduismo y la India!